terça-feira, 27 de fevereiro de 2024

XVII EBEB

 

Fonte: https://www.even3.com.br/cobal-ebeb-2024/

EBEB é a sigla para Encontro Brasileiro de Estatística Bayesiana, evento realizado a cada 2 anos. A realização dos EBEB's ficou um pouco prejudicada pela pandemia. A última edição que participei foi a do XV EBEB, realizado dias antes da pandemia ser declarada no Brasil em março de 2020. A edição XVI aconteceu em 2020, no formato remoto, ao qual nunca me acostumei inteiramente. Felizmente será realizado este ano o XVII EBEB, em formato presencial.

Ele será realizado pela UFMG, no campus da Pampulha, entre os dias 2 e 6 de dezembro de 2024. Ele está sendo organizado pela diretoria do ISBRA, a seção brasileira do ISBA, que é constituida de pesquisadores da UFMG. Esta edição tem a peculiaridade de coincidir com o COBAL, sigla para Congresso Bayesiano da América Latina. A última edição do COBAL foi o VI COBAL, realizado em 2019 na PUC de Lima e no qual tive o prazer de ministrar a conferência de encerramento.

Devido a essa característica, o evento terá um ar ainda mais internacional, como pode ser atestado pelo apoio das associações de Estatística do Brasil, México e Chile. A programação desse evento conjunto está a cargo do comitê científico (CC), composto de cerca de 15 pesquisadores de diferentes partes do mundo, não apenas da América Latina.

O evento contará com uma série de palestras bem como apresentações em torno de temas específicos de Estatística Bayesiana. Esses temas são escolhidos pelo CC em cima de propostas feitas pela comunidade internacional. Além disso, o evento terá um minicurso sobre Bayesian Deep Learning. 

A lista de apresentadores convidados apresenta pesquisadores do Brasil e da América Latina mas terá também muitos pesquisadores de outras partes do mundo. Haverá sessões de apresentações organizadas pelas sociedades que apoiam o evento e também sessões de  jovens pesquisadores.

Acredito que será um evento interessante e alinhado com os melhores eventos da área neste ano. Muitas novidade nos campos de Estatística, Ciência de Dados, Machine Learning serão apresentados e algumas novidades também serão trazidas. Trata-se de uma ótima oportunidade de atualização e/ou aprendizado sobre o que está sendo feito de mais avançado no mundo Bayesiano e tudo isso concentrado em 1 semana e aqui pertinho de todos nós, em Belo Horizonte (para quem quiser saber porque a cidade tem esse nome, a foto que abre essa postagem dá uma idéia).

Para maiores informações e para se inscrever, visite https://www.even3.com.br/cobal-ebeb-2024/

terça-feira, 31 de outubro de 2023

Ocupação pré-colombiana da Amazonia e sua relação com a floresta - parte III

                                                                      Fonte: https://science.altmetric.com/details/155161208

A parte II dessa sequência de postagens antecipou a informação sobre a aceitação para publicação na Science de nosso trabalho mutidisciplinar sobre a ocupação da Amazônia. Finalmente, no início deste mês nosso trabalho foi publicado com o título ligeiramente modificado para More than 10,000 Pre-Columbian earthworks are still hidden throughout Amazonia. Essa publicação em um periódico de alto impacto levou a uma série de outros impactos, que chamaram a minha atenção. Embora esta postagem seja dedicada a destacar os aspectos de relevância associados a essa classe de publicações, preferi que ela fosse ser intitulada como parte III, para manter a ligação com as partes anteriores.

Usualmente as publicações científicas tem sua relevância genericamente associada ao número de citações que ela recebe. Essa medida está longe de ser indiscutível. Como exemplo extremo, uma publicação pode ter uma enormidade de citações apenas para falar de defeitos e erros que ela possa ter. O espectro mais usual de imperfeições está o fato que a mera contagem de citações não é um forte indicador de sua relevância. De fato, publicações em periódicos de menor relevância podem angariar várias citações grandemente concentradas em periódicos de baixa relevância. 

De todo modo, o número de citações de um artigo pode levar muito tempo para ser consolidado. Assim, para simplificar avaliações bibliométricas mais recentes, costuma-se medir o impacto de uma publicação pela avaliação do impacto do periódico onde ela foi depositada. O argumento é que em média periódicos tendem a publicar artigos da sua faixa de relevância ou impacto. Foi então criado e vem sendo utilizado nesse tipo de avaliação o chamado fator de impacto de um periódico. Um dos principais é o JCR, abreviação de Journal Citation Report, compilado pela empresa Clarivate.     

Esse fator é atualmente calculado para mais de 20 mil periódicos das mais diversas áreas do saber e mede quantas citações os artigos publicados em um periódico científico em uma determinada janela de tempo (exemplo: 1, 2 ou 5 anos) receberam numa janela similar após sua publicação. Como se pode ver, existe muita variação possível dentro do espectro de tempo usualmente considerado. De todo modo, a ordenação dos periódicos em geral não sofre muita flutuação.

De uma lista recente que está disponível on-line pode ser verificado o fator de impacto de cerca de 9.500 periódicos científicos. Lá pode se verificar o fator de impacto de vários periódicos de Estatística. Em particular, o fator mais alto foi 5,8 obtido para o Journal of the Royal Statistical Society Series B. Esse periódico faz parte de qualquer lista de periódicos de elite da Estatística, como já apontado aqui anteriormente. Essa é a melhor taxa de citação que se obtem na Estatística. 

Pois bem, o fator de impacto da Science é 56,9, quase 10 vezes maior. Não chega a surpreender que essa marca obtida pela Science a colocou no 22o lugar dentre todos os quase 10 mil periódicos considerados.  Dentre as outras 22 mais citadas, apenas a Nature (em 18o lugar com fator de 64,8)  é um periódico multidisciplinar, que cobre um amplo espectro de áreas do saber. [O restante é de periódicos específicos de Medicina e áreas próximas como Biologia Molecular, com liderança para um periódico sobre Cancer.]

Mas o impacto de periódicos no topo da lista vai muito além de refletir apenas o impacto científico imediato, o que já seria um importante indicador. Ciente do impacto que possui na sociedade, a Science possui um sistema que armazena por conta própria o impacto que suas publicações tem nas mais diferentes midias acessadas pela sociedade. Contagens de menções a cada artigo na imprensa mundial, nos blogs, no X (antigo Twitter), no Reddit, e em videos disponibilizados on-line, bem como seus respectivos geo-referenciamentos são atualizados constantemente. 

O caso de nosso artigo serve para ilustrar esse ponto, como destacado na figura que abre esta postagem. Apesar de ter sido publicado a menos de 1 mês, sua publicação já gerou conteúdo para dezenas de artigos jornalísticos e centenas de postagens diretas sobre o artigo no X bem como citações em blogs e nas outras mídias supracitadas, ao redor do mundo. Esses números preliminares (acessáveis aqui) superam em ordens de magnitude o impacto direto na sociedade que qualquer outro artigo de Estatística possa ter tido ou possa vir a ter. 

A pergunta que se impõe é: porque esse artigo foi aceito para publicação e vem recebendo tanta atenção? A minha explicação a seguir virá com claro e assumido viés estatístico. É inegável a importância da Amazônia para o mundo. Decorre que a história da Amazônia também atrai a atenção de muita gente. Perguntas sobre como foi constituída a floresta e o nível de isolamento que ela teve ao longo da história adquirem muita relevância. Especialmente nos dias de hoje, onde o nível de interferência humana vem crescendo. 

Assim, estudos que mostram que a Amazônia foi frequentada e usada por civilizações anteriores ajudam a entender os possíveis rumos que essa região do mundo e principalmente sua floresta possam vir a ter. Nosso trabalho forneceu uma quantificação para essa intervenção. Essa quantificação tem permitido que as pessoas façam extrapolações baseadas nos números que ela fornece. Os números de intervenções humanas no terreno amazônico ainda não encontradas que são favorecidos em nossa análise são 10 a 25 dezenas de vezes maiores que o número de intervenções na terra que já foram descobertas. 

Muitos estudiosos já vinham especulando sobre a validade da hipótese ainda reinante de que a Amazônia era um vasto território intocado até então. Os resultados de nossa análise reforçam a tese de uma maior interferência humana do que muitos imaginavam, baseados nas escassas contagens de intervenções na terra até agora reportadas. As extrapolações a partir dai são as mais variadas. Já li até textos sugerindo que nossas análises poderiam contribuir para a discussão bastante atual sobre o direito a essas terras pelas populações originárias da região (aqui vai um exemplo).

Claro que tudo isso nos enche de orgulho por trazer mais luz e informação para a sociedade sobre questões tão importantes para a compreensão de uma região do globo tão influente nos dias de hoje. Mas também traz um senso de responsabilidade muito grande sobre o impacto (agora no sentido mais amplo possível) do que estudamos, modelamos, predizemos e reportamos possa ter sobre os rumos da compreensão sobre essa região.   


terça-feira, 5 de setembro de 2023

Ocupação pré-colombiana da Amazonia e sua relação com a floresta - parte II

Fonte: Over 10,000 Pre-Columbian earthworks are still hidden throughout Amazonia

Faz mais de um ano que postei aqui aquela que se tornou a parte I de uma história que está tendo uma evolução muito promissora. Esta postagem de hoje é para relatar com muita felicidade que o nosso artigo Over 10,000 Pre-Columbian earthworks are still hidden throughout Amazonia foi aceito para publicação no prestigioso periódico Science. Junto com o periódico Nature, elas formam a dupla de elite na divulgação do que de melhor está sendo feito na Ciência ao redor do mundo.

Existem alguns pontos que merecem ser destacados nesse episódio. Gostaria de elencar alguns deles. Antes de tudo, esse acontecimento me despertou para voltar a postar aqui no StatPop! Existem outros pontos mais sérios para uma reflexão menos auto-centrada.

Esse artigo foi fruto de trabalho árduo realizado por vários estudiosos das mais diferentes áreas da Ciência e das mais diversas partes do mundo, visando uma compreensão mais ampla da Amazônia. Boa parte desse esforço foi devotado a levantamento e catalogação de dados sobre essa importante região do planeta. Esse esforço foi fundamental para nós, por exemplo, por fornecer os dados que possibilitaram o nosso trabalho. Muitos profissionais de Estatística, especialmente os da academia, não valorizam suficientemente o esforço desses grupos de pessoas. Sem eles, nossa análise teria sido impossível!

Um desses trabalho de compilação de dados é o AmazonArch. Esse esforço especificamente é mais voltado para dados arqueológicos, que foram a base de nosso trabalho. Além disso, para correta caracterização da possível influência de fatores no processo de ocupação da Amazônia, é fundamental ter os dados de variáveis de interesse com o maior nível possível de resolução espacial. Para ser ter uma idéia da ordem de grandeza, são necessárias em torno de 7 milhões de medições de cada variável se pensarmos em uma resolução de 1 km2. Esse é um esforço que envolve pesquisadores de diferentes áreas tais como Meteorologia, Ecologia, Botânica, Zoologia, Geologia, Geografia, Sensoriamento Remoto, para citar algumas das principais. Essa tarefa não é trivial e precisa de muita dedicação de todas as partes envolvidas para poder funcionar a contento.

Nosso estudo foi voltado para compreender o que faz com que certos locais tenham sido escolhidos por povos antepassados para fixar suas atividades. O mais óbvio é procurar relacionar esses locais preferenciais a aspectos ligados às áreas da Ciência listadas acima. Exemplos incluem características do solo (como salinidade), do terreno (como altitude e declive), climáticas (como chuva e umidade), da ocupação animal (como deposição de dejetos) e vegetal (como cobertura) e da geografia (como malha hidrográfica). Todas essas características devem em princípio ser consideradas e possivelmente possuirão relação com a ocorrência de vestígios civilizatórios.

Outro ponto de satisfação é saber que todas as análises que esses pesquisadores precisavam realizar com os dados que eles próprios coletaram poderiam ser realizadas sob a ótica da Estatística, usando os dados como matéria prima e produzindo resultados com a correspondente margem de incerteza a respeito deles. A chave para isso é a utilização de modelos estatísticos e operacionalizar a inferência para esses modelos. Estar dentro da área que responde aos desejos de outros pesquisadores e quantifica os resultados que esses últimos tanto necessitam de forma que eles possam tirar conclusões é particularmente gratificante.

Como acadêmico, é bom ver que tudo isso pode ser materializado através de um trabalho de doutorado realizado dentro do Programa de Pós-Graduação em Estatística da UFRJ, do qual faço parte. Todo cientista trabalha de forma muitas vezes isolada do resto do mundo mas paradoxalmente faz isso se afastando desse mundo para o qual ele almeja contribuir. Ter tido a oportunidade de fornecer para a sociedade explicações sobre questões de interesse para a humanidade compreender sua própria história e do ambiente que a circunscreve foi uma agradável sensação de dever cumprido.

Fazer tudo isso ao mesmo tempo que um aluno estava sendo formado também foi muito bom. Hoje, o aluno já se formou e está (bem) empregado em uma instituição no exterior. Além de ter feito as análises necessárias, ele produziu um pacote no R: bayesPO. Esse pacote está gratuitamente disponibilizado na internet através do link acima e permite que pesquisadores ao redor do mundo que tenham necessidade de análises similares possam realiza-las com um mínimo de conhecimento estatístico.

A última cereja do bolo para mim foi o fato de todos os autores terem concordado com o título do artigo fazer menção explícita a um resultado direto de nossa análise estatística. Ele fala de uma característica da distribuição preditiva das ocorrências ainda não observadas (ver figura acima). Essa distribuição só é obtida de forma direta através de nossa metodologia. Esse reconhecimento pela extensa comunidade de colaboradores científicos do artigo só reafirma a centralidade da Estatística para um assunto científico de alta relevância para tantas outras áreas da Ciência.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

Entrevista para a UFSCar

 

Fonte: www.youtube.com/watch?v=T3vfC2WLLoY (canal de YouTube do PIPGEs UFSCar-USP)

Depois de um longo periodo afastado, voltamos aqui para divulgar uma entrevista que concedi para a UFSCar. O convite foi formulado pelo prof. Marcio Diniz durante uma participação em um congresso científico realizado em novembro do ano passado em Florianópolis. Eu estava concentrado na minha apresentação em formato poster, sentado à espera de interessados no meu trabalho de Ecologia, quando o Marcio apareceu. Para minha surpresa, ele falou da série de entrevistas que ele vinha realizando no âmbito de sua atuação na UFSCar. Aceitei na hora o convite e agendamos a entrevista pelo meio remoto para a virada do ano.

Depois de alguns desencontros, finalmente tivemos nosso encontro. Eu não sabia exatamente sobre o que versaria a entrevista mas achei ótima a possibilidade de falar sobre minha carreira. E a conversa foi exatamente assim. O Marcio foi muito afável, o que me deixou bastante confortável para divagar, ao mesmo tempo que apresentou vários desafios para reflexão. 

O material foi editado e o resultado foi divulgado aqui esta semana. Ao longo de um agradável bate-papo, o Marcio me instou a discorrer pelos mais diferentes aspectos de minha trajetória profissional e sobre a carreira de um pesquisador, sob meu ponto de vista.

Questões acadêmicas como elaboração de artigos, envolvimento com aplicações de Estatística, divulgação de trabalhos científicos, orientação de alunos, ministrar disciplinas foram todos tratados. Também tratamos do inicio de minha carreira e de perspectivas para o futuro. 

Gostaria de agradecer a oportunidade de reflexão que o prof. Marcio Diniz (cuja imagem durante a entrevista ilustra esta postagem) me proporcionou. Foi um momento muito agradável e de bastante informalidade para tratar de assuntos muito sérios e altamente relevantes para mim como pessoa e como profissional. 

Como se poderá ver da entrevista, minha postura foi mudando ao longo do tempo e essa entrevista é um reflexo de meu posicionamento nos dias de hoje. A entrevista acabou sendo mais longa do que eu imaginava mas como ficará disponível por tempo ilimitado, poderá ser assistida em episódios. Gostaria de terminar essa postagem incentivando todos a visita-la, bem como as outras entrevistas desse mesmo canal, e deixar seu feedback sobre o que viu lá. 

terça-feira, 10 de maio de 2022

Cotas nas universidades: um questão política?*

Recentemente participei da banca de um concurso para selecionar um professor universitário. Ao ser perguntado sobre as cotas nas universidades, um dos candidatos se recusou a responder, dizendo se tratar de uma questão política. Esse pequeno texto analisa o assunto sob a ótica científica onde acreditamos que ele deve ser tratado.

O princípio básico que tem regido a entrada nas universidades brasileiras é a demonstração de proficiência ou habilidade no assunto pelo candidato. Inicialmente usando as notas obtidas pelo aluno na prova de seleção, o processo foi aprimorado através do ENEM, com o uso de técnicas consagradas mundialmente. Essas técnicas são encontradas na Estatística/Educação, na área conhecida como Teoria de Resposta ao Item (TRI).

Essa teoria assume que as questões das provas de seleção funcionam da mesma forma para todos os alunos. Isso pode ser inadequado em um país com diferenças no plano educacional. Para tornar a competição por uma vaga no ensino superior mais justa, optou-se por conceder as vagas através de separação em sub-grupos (alunos de escolas públicas, minorias sociais, etc) com as cotas para cada grupo sendo pré-definidas. 

O que a TRI faz é ensinar como extrair medições da proficiência, levando em consideração o tipo de questões às quais os alunos foram expostos na prova de seleção. Os detalhes sobre como isso é feito são explicados para o público leigo através de várias postagens do blog StatPop (www.statpop.com.br). 

Um dos inúmeros avanços da TRI é a área conhecida como funcionamento diferencial do item (FDI). Essa é a área da TRI onde se assume que o item não funciona da mesma forma para todos os alunos. Alunos que não foram expostos a um conteúdo não podem ter proficiência nele por mera falta de conhecimento e não por algum indicador inato seu. A possível recuperação desse conteúdo pelo aluno talvez pudesse evidencia-lo como mais proficiente que outro aluno que teve mais pontos no ENEM só porque foi exposto a esse conteúdo na sua escola de ensino médio. 

Os professores Tufi Soares (Universidade Federal de Juiz de Fora), Flavio Gonçalves (Universidade Federal de Minas Gerais) e eu nos debruçamos sobre esse tema alguns anos atrás. Em uma série de trabalhos, incluindo uma dissertação de mestrado premiada, mostramos como a TRI com o FDI poderia ser aplicada para calcular as proficiências em exames a níveis nacionais, como o ENEM. 

Assim, é possível recuperar as verdadeiras proficiências dos alunos. E esse cálculo precisa levar em conta as diferentes deficiências de formação de cada aluno. Mas não há almoço grátis; sua implementação exige mais esforço operacional de processamento e também das universidades no sentido de repor as deficiências acumuladas.

O ganho é possibilitar que os alunos mais habilitados recebam notas melhores. E isso pode ser feito sem ingerência política; apenas tomando como base a premissa de aprovar os alunos mais capazes, independente das possíveis deficiências na sua formação. A Ciência cuida do resto.

* - Texto publicado em 09 de maio de 2022 no blog de Ciência & Matemática do jornal O Globo 

terça-feira, 29 de março de 2022

Para onde vai a Estatística? Comparação entre Brasil e EUA

 

https://magazine.amstat.org/blog/2021/10/01/undergrad-stats-degrees-up/

A estatística Doris Fontes é uma ferrenha e ardorosa defensora da Estatística. Ela encontrou tempo entre suas atividades profissionais para presidir por vários mandatos a seção mais importante dos Conselhos Regionais de Estatística (CONRE's), que é a de São Paulo. Além disso, é uma incansável estudiosa da profissão, sem dogmatismo mas com uma abordagem construtiva e de reflexão. Ela também participa ativamente de eventos acadêmicos da área, sempre buscando uma conexão entre a atividade no mercado produtivo e a academia.  

Ontem, ela brindou a lista de discussão da Associação Brasileira de Estatística com alguns gráficos que refletem sua preocupação com a pergunta do título desta postagem. O primeiro deles mostra com vai a evolução da profissão de estatístico nos EUA. E a figura mostra um cenário bastante animador por lá. A formação de  estatísticos a níveis de graduação e de mestrado vem crescendo a um nível exponencial. Parte desse aumento é um reflexo do pequeno numero de cursos de graduação (e até mesmo de mestrado) no século passado. Mas ele está claramente relacionado a um enorme avanço do mercado de trabalho na direção de profissionais desta área. Os cursos de doutorado já apresentam um discreto avanço (digamos linear) na formação de doutores, claramente impactado pela maior procura por posições no mercado de trabalho. 


Fonte: Doris Fontes (com dados do INEP)

A figura acima representa parcialmente a situação neste século no Brasil ao nível de bacharelado. Por ela se vê que a capacidade instalada de formação de profissionais nas universidades até apresenta um discreto aumento nas vagas oferecidas. Mas esse esforço está muito longe de se refletir em profissionais que essas universidades conseguem entregar para a sociedade. Existem algumas explicações para essa "ineficiência produtiva" na academia. 

Acredito que boa parte esteja relacionada com a bagagem que os ingressantes trazem do ensino médio. Essa última é claramente insuficiente. Os alunos que entram no curso pensando que vão lidar com os números das estatísticas às quais todos somos expostos. ao contrário eles se vêm perante uma realidade repleta de formalismos, expressos em letras de diferentes alfabetos. Com isso, eles se perdem na abstração matemática. Além de ser baseada em tema que muitos dominam com dificuldade, ela representa um choque de expectativas. 

É urgente que seja aproximada a matemática da universidade com a matemática da maioria dos ingressantes. A universidade está atenta a isso e procurou em certa medida diminuir esse distanciamento técnico mas isso não resolve a quebra de expectativas. Algo tem sido feito com visitas a escolas de ensino médio mas isso é claramente insuficiente. Talvez uma mudança curricular no ensino médio passe pela inclusão de mais conteúdo estatístico, apresentado com mais computação. Isso poderia suavizar o salto necessário, através do uso de uma linguagem mais acessível aos alunos do ensino médio. Mas está longe de ser uma tarefa factível e implementável a curto prazo. É possível que o exemplo americano possa trazer subsídios úteis para o nosso país.

O espaçamento entre ingressantes e concluintes pode ser investigado em mais detalhe através da Figura abaixo.  Ele mostra onde há espaço para uma formação mais eficiente, ao menos quantitativamente. Nele, pode se ver que a maior eficiência de formação está na UFRJ e o pessoal de lá deve ser parabenizado. Mas um olhar mais atento mostra que essa eficiência foi obtida em parte com a diminuição do número de ingressantes, comparativamente a outros centros. Qual é a melhor estratégia; privilegiar a formação da maior taxa possível de ingressantes ou formar mais bacharéis em Estatística, a um custo maior? 

                                             Fonte: Doris Fontes (com dados do INEP)

segunda-feira, 21 de março de 2022

Reflexões sobre o posicionamento do ISI

Fonte: https://blog.isi-web.org/2022/03/17/post-1067/?utm_source=rss&utm_medium=rss&utm_campaign=ukraine

Nossa última postagem republicou o posicionamento do ISI (International Statistical Institute) sobre a guerra na Ucrânia. A questão é longe de ser óbvia, envolvendo questões sobre apartidarismos de organismos acadêmicos e tomada de partido sobre assuntos não-acadêmicos por organismos fundamentalmente acadêmicos. Distinções sutis mas relevantes precisam ser definidas: devemos nos posicionar contra Rússia ou contra a guerra? devemos nos posicionar contra países ou contra seus habitantes?

Essas perguntas estão sendo a ordem do dia em vários foros científicos do momento, como associações profissionais, congressos e mesmo grupos de colaboração científica. Algumas instâncias optaram por banir a participação de pesquisadores filiados a instituições russas enquanto outras entendem que só se deve condenar estados e governos e não os seus cidadãos. 

É dentro desse contexto que se insere o misto de manifestação e desabafo do presidente do ISI, cujo foto abre nossa postagem, sobre a reflexão que foi lá realizada sobre o contexto e como se chegou à posição externada pela carta divulgada no início do mês. Essa reflexão está reproduzido na íntegra aqui abaixo. Ela também está dentro do escopo do StatPop, pela nossa proposta de popularizar a Ciência e pelas implicações que isso traz para análises de contextos como o que se apresenta para toda a humanidade no presente momento.  

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Ukraine

por Steve Penneck, ISI President

The question as to whether to issue a statement on the invasion of Ukraine, and if so what it should say, has been the most challenging issue to face me in my Presidency to date. 

There is no doubting the abhorrence members will feel at military aggression and its impact on civilians. We will all have our individual views, and many of us will have ways of expressing these to our elected representatives. This is quite different from the ISI taking a view. We are an international organisation, that is non-political, and as far as I know we have not previously taken a view in an international conflict. And of course there have been so many of these in recent decades. 

Our independence from political activities is important for us. It is a stance we have maintained for 140 years. Our statutes require us to facilitate collaboration among our diverse membership. Our independence enables us to support our members in all countries of the world and to organise and support conferences and workshops worldwide.

In such circumstances it is always good to seek advice. My six predecessors as President were consulted, and asked whether there had been anything in their experience to compare with the situation in Ukraine.  No-one had been able to recall a similar situation. 

We also convened a special meeting of ISI Council to discuss the situation. Clearly there were different views, but there was a consensus that a statement should be made. This was based on the unique issues that many saw around this conflict, with practically universal condemnation, not only politically, but also by sports, cultural and scientific organisations. See for example the statement from the International Science Council: https://council.science/current/news/statements-international-scientific-community-conflict-ukraine/ . Their webpage includes statements from other scientific organisations. 

Having decided to make a statement, Council were keen that it should not condemn either side, but should simply condemn the aggression, and put it in the context of all aggressions. We needed to express concern and solidarity with colleagues in Ukraine; but also keep lines of communication open with statisticians in Russia, recognising that statisticians are not responsible for the actions of their governments, and should not be penalised for them. The statement focuses especially on the impact on statistical work and statisticians.

We agreed to two temporary actions: not organising or supporting events in Russia and putting the Central Eurasia Outreach Committee on hold. Both of these will be reviewed in a few weeks’ time when the situation is clearer. The fact is that travel to Russia will be difficult for many of our members, and many will not support such events, which would make them unviable. We feel that the Outreach Committee has great potential in the region, but that these activities would be difficult at present and should be paused for the time being.  

Reaction to the statement from ISI members has been mixed. We have had a number of messages of support, recognising that this would have been a difficult decision. Some members have not been happy, some thinking the statement too weak; others too strong. I have especially valued those who have given views from the point of view of the ISI – an independent statistical association dedicated to international contact and networking between professional statisticians.

So where do we go from here? Well, we will review the situation in May. Conflict cannot continue for ever and by then some sort of solution should emerge. There will be an enormous need for reconstruction in Ukraine, and I hope ISI can help here. If we do we will need the help of our members.  Ada and I will be attending next month’s IAOS conference in Krakow, Poland, where I am sure we will have some discussions on the best way to proceed. So look out for updates on this.


terça-feira, 8 de março de 2022

Posicionamento do ISI sobre a Ucrânia

 

Dear members,

The ISI strongly condemns all military aggression, and in particular that currently taking place in Ukraine. It is of global concern. We express our support for the Ukrainian people and all who are victims of these events.

The current actions, as with all military aggression, will seriously impact on statistical science and the work of statisticians, both in the field of academic and official statistics, not only in Ukraine but also in the Russian Federation, and in other neighboring countries. In particular, the actions will cause disruption to the statistical processes that official statistics rely on, leading to a lack of information on Ukrainian society and its economy; with an impact on the quality of statistics, especially on key indicators such as the movement of people and trade.

The ISI and its seven associations have a long tradition of collaborating with statisticians and organizations in Ukraine as well as in the Russian Federation and other countries in the region, where we have a number of members.

Our mission is to lead, support and promote the understanding, development and good practices of statistics worldwide. International co-operation on statistics remains the cornerstone of our mission. We continue our support of the scientific work of Russian and Ukrainian statisticians, including students whose studies have been interrupted by the conflict. However, in the light of these extraordinary circumstances, and while we do not hold our Russian colleagues responsible for the actions of their government, the ISI has decided to refrain from organizing and/or supporting statistical events in Russia. We have also put the activities of the ISI Eurasian Outreach Committee on hold.

We will reconsider our position in the light of changes in the current situation.

Stephen Penneck, ISI President
Ada van Krimpen, ISI Director

terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

A tragédia anunciada da região serrana

Fonte: https://infograficos.oglobo.globo.com/rio/tragedia-chuvas-em-petropolis-como-ocorreu.html?=123?utm_source=globo.com&utm_medium=oglobo

Todo verão dá início à temporada de chuvas fortes em boa parte do território nacional. Muitas dessas chuvas causam transtornos com os casos mais extremos causando perdas materiais e as vezes chegando infelizmente a perdas humanas. O que tem se tornado mais frequente nos últimos tempos é um aumento dos níveis das chuvas. Esse aumento vem sendo experimentado por todo o mundo, por conta das mudanças climáticas a qual nosso planeta vem sendo submetido. 

A figura abaixo, extraida daqui,  ilustra a consequência dessas mudanças no clima. Ela indica uma mudança expressiva com o aumento de chuvas fortes em todas as regiões dos Estados Unidos. Coincidência ou não, os aumentos mais expressivos são encontrados nas regiões mais densamente habitadas. No caso do Brasil, esse aumento no volume das chuvas não está sendo acompanhado suficientemente bem pelas medidas preventivas, ou ao menos mitigadoras, das suas possivelmente desastrosas consequências.

Fonte: https://medialibrary.climatecentral.org/extreme-weather-toolkits/heavy-rain-flooding

É dentro desse preocupante cenário que se insere o ocorrido na cidade de Petrópolis semana passada. Localizada na região serrana do Estado do Rio de Janeiro, Petrópolis é situada sobre (e cercada de) morros, que lhe garantem um clima ameno no verão. Isso faz com que ela se torne destino (real ou desejado) de boa parte dos cariocas durante esse período, para fugir do clima inclemente a que são submetidos na capital do estado.  

Todo esse movimento em direção às cidades serranas gerou desenvolvimento econômico que não foi acompanhado na mesma velocidade por avanços na infra-estrutura. Isso causou também ocupação desordenada de terrenos, muitos deles em encostas de morros, onde várias famílias com menor poder aquisitivo estabeleceram suas residências em condições abaixo das ideais. Entre as consequências de ocupação desordenada temos proliferação de doenças e desestabilização de encostas.

No dia dos maiores deslizamentos houve o despejamento de fortes quantidades de chuva em um período muito pequeno de tempo na região sul da cidade, onde o relevo é ainda mais acidentado. Em um determinado bairro (Alto da Serra) dessa região, choveu cerca de 260mm em um período de 6 horas. Isso é muito, especialmente se contrastarmos com o nível esperado de chuva para todo o mês de fevereiro em Petrópolis, que é de cerca de 240mm. 

Assim, não há mais dúvidas que o nível de chuvas está aumentando no mundo e que medidas mais enérgicas precisam ser tomadas. Algumas cidades brasileiras estão construindo grandes bolsões subterrâneos, destinados a acumular grandes volumes de água para melhor administração de seu escoamento. A cidade do Rio de Janeiro foi uma das primeiras a avançar nessa direção com a construção de enormes piscinões, como são chamados. Um resultado visível foi a diminuição de enchentes em importantes regiões da cidade, notoriamente associadas a alagamentos.

Petrópolis também dispõe de alguns desses reservatórios, que estão conectados aos sistemas históricos de escoamento, construídos ao período do seu auge, quando servia de residência de verão à família imperial a cerca de 2 séculos atrás. Mas eles claramente foram insuficientes para o volume recebido na semana passada.

Apesar de toda essa volumosa quantidade de chuva, ela está muito longe de ser recorde mundial. Um site do governo australiano aponta o volume recorde de chuva para diferentes quantidades de tempo. Como exemplo, o recorde mundial para 6 horas de chuva é de 840mm, registrado na localidade de Muduocaidang, na China, em 1 de agosto de 1977. Como se pode ver, o recorde é muito superior ao volume observado em Petrópolis.

Outra informação importante diz respeito ao impacto com o qual esses níveis de chuvas se traduzem em perdas humanas ou materiais. A título de exemplo, podemos tomar uma das inúmeras chuvas intensas que rotineiramente afligem a Índia no período das monções. Em 19 de julho do ano passado, a cidade de Mumbai, centro financeiro da Índia, e uma de suas cidades mais densamente habitadas, recebeu uma chuva surpreendentemente alta, nos níveis e na duração da chuva recebida por Petrópolis. A chuva obviamente causou muitos estragos na cidade e poucas dezenas de vidas foram perdidas.

Mas Petrópolis, mesmo tendo uma pequena fração da população de Mumbai, teve chuva que já causou a morte de 2 centenas de pessoas e tem potencial para chegar a 3 centenas por conta do sombrio prognóstico para a maioria dos desaparecidos. É a maior tragédia da história da cidade! Por que isso aconteceu? Isto é, porque os resultados foram tão mais devastadores que, por exemplo, o de Mumbai?

A figura que abre essa postagem ajuda a explicar. Antes da forte chuva causar inúmeros deslizamentos de terra, a cidade vinha recebendo grandes volumes de chuva por vários dias seguidos. Toda essa água foi penetrando o solo, já desestabilizado por inúmeras intervenções. Essas intervenções foram feitas para abrir caminhos e construir casas, muitas delas forma feitas de forma irregular e sem o devido acompanhamento técnico. E, para piorar, se situavam em terreno de topografia inapropriada, com acentuados declives. 

Tudo isso culminou com deslizamentos de terra tendo enorme quantidade de material sólido, como árvores. À medida que adquiriam volume e encontravam construções em seu caminho, as derrubavam com facilidade e carreavam junto todo esse material das casas (muros, telhados, aparelhos domésticos, etc). Todo esse descomunal volume aumentou enormemente o poder de destruição dessa avalanche e inviabilizaram o correto funcionamento do sistema de escoamento pluvial, projetado para levar agua e não geladeiras, caixas d'água e telhados.

O resultado final foi um desenlace devastador para a cidade e seus habitantes enlutados. Mas ninguem pode dizer que foi surpreendido. A mesma região serrana passou por um evento igualmente devastador a pouco mais de uma década, quando quase mil mortos foram contabilizados em várias cidades da região. O enfrentamento sério dessa recorrência nefasta exigirá medidas duras e trabalho incessante com uso eficiente e criterioso dos parcos recursos disponíveis para esse fim, com legisladores pensando acima de tudo na coletividade e não em proveito próprio. 

Conseguiremos? Muitos como eu desejam que sim! Mas o retrospecto recente não está a nosso favor...   


terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Ocupação pré-colombiana da Amazonia e sua relação com a floresta

                                                                                            Fonte: figuras geradas pelo Dr. Guido Moreira


As últimas décadas testemunharam um expressivo aumento da importância que a Amazônia possui para toda a humanidade. Esse movimento fomentou estudos sobre vários aspectos culturais, sociológicos, econômicos e biológicos sobre essa imensa região da Terra. Entre esses estudos, podem ser destacados aqueles ligados à ArqueoEcologia. Essa é a área da Ecologia dedicada ao estudo da relação do homem com a natureza em eras passadas.

Muito antes da colonização européia das Américas, esse continente já era habitado por uma grande variedade de povos indígenas. Esses povos ocuparam parte da Amazônia. Alguns dos estudos arqueoecológicos recentes visam entender se esses povos interferiram na composição atual da floresta e, em caso positivo, de que forma isso se deu. Perguntas a serem respondidas incluem: essa ocupação modificou a composição da floresta? Se mudou, a que nível e intensidade e de que maneira?

Essas perguntas podem ser respondidas com o uso de técnicas específicas para análise desse tipo de dado, onde muitas ocorrências não puderam ser observadas. Esse tipo de dado, muito frequente em Ecologia é chamado de presence-only ou apenas-presenças. Postamos sobre o assunto aqui, cerca de 5 anos atrás. 

Naquele momento, nossa metodologia ainda estava em desenvolvimento. Passado todo esse tempo, a tese que desenvolveu o estudo foi aprovada, o artigo científico relatando os resultados foi aceito para publicação e um software para análise de dados presence-only foi disponibilizado gratuitamente. Com isso, se tornou possível tratar de todos os assuntos relacionados a análises desse tipo de dado de uma forma integrada e totalmente estruturada em um modelo unificado.

Essas idéias foram aplicadas para o estudo das presenças de geoglifos (grandes figuras feitas pelo homem no chão) e outros vestígios pré-colombianos na Amazonia. A imensidão de 7 milhôes de km^2 de área é um forte empecilho para o completo mapeamento desses vestígios. Além disso, existe uma série de outros impedimentos, como distância de estradas (e rios), para averiguações por terra (e aquáticas) e cobertura vegetal, para averiguação aérea ou por satélite.

Assim, seria impossível responder adequadamente as variadas perguntas acima pela estatística convencional. Nossa metodologia se encaixou como uma luva para fornecer respostas mais robustas a essas questões. Foi possível perceber que, embora só tenham sido encontrados pouco menos de 1000 geoglifos até agora, são esperados muito mais. Nossos estudos indicam ser altamente provável que existam pelo menos mais 10.000 geoglifos ainda ocultos, podendo esse número chegar até 25.000. Isso pode ser visto da figura acima contendo alguns de nossos resultados preliminares e também um mapa de calor da Amazonia para presença de geoglifos.

Foi também visto que a maior probabilidade de localização dos traços de civilizações passadas estão localizados no arco sul da floresta, por onde também passa a entrada atual da ocupação desse espaço pela população em geral. Mas também foi possível ver que geoglifos ocultos poderão ainda ser encontrados por outras partes da Amazônia, embora com chance menor.

Para gerar esses resultados, nosso modelo utilizou informação fornecida por várias outras variáveis ligadas a clima, solo, topografia dos locais. Algumas dessas variáveis foram usadas para explicar as presenças observadas e outras para explicar o filtro gerado pela observabilidade parcial. Em ambas as componentes, algumas variáveis se mostraram boas preditoras e outras não. 

Além disso, pudemos verificar o nível de associação entre a presença desses traços de ocupação com a existência atual de diferentes espécies vegetais. Isso poderia dar indícios sobre a possível influência humana na composição atual da floresta e quais as espécies mais domesticáveis, ou suscetíveis a essa utilização. Com esses achados sendo agregados a outros estudos, será possível entender como se deu a distribuição das espécies na floresta e quão relevante nessa distribuição foi/é a presença humana.

Esse estudo ainda está em fase final de redação para possível divulgação em periódico científico. Assim que essa etapa for concretizada, será possível divulgar mais detalhes sobre nossos achados. 

 

terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

A desigualdade socio-economica e os números da COVID19

Fonte: https://ourworldindata.org/covid-vaccinations

Uma reportagem recente do sistema Globo deve ter atraido a atenção de muitos: o assunto era o enorme fosso de desigualdade entre países ricos e pobres no que diz respeito à vacinação da Covid19. Essa tendência vem se preservando com o passar do tempo. Passados 2 meses dessa reportagem, os dados não deixam duvidas: embora a taxa mundial de pessoas que receberam ao menos 1 dose da vacina seja de 61,4%, a mesma taxa para habitantes de países mais pobres é de apenas 10%. 

A tabela acima, extraida do site Our World in Data, elucida alguns detalhes dessa comparação. Antes de consulta-la, não custa lembrar que, se a média global está em torno de 60% e a dos países pobres está em 10%, então a taxa de alguma vacinação em países ricos está próxima dos 80%. Esse número é 8 vezes maior!  

Voltando à tabela, vemos que existem flutuações expressivas dentro dos 2 grupos de países. Um dos exemplos mais notórios é a Russia que, por estar na Europa, deve ter sido classificada como país rico. Entretanto, sua taxa de vacinação de apenas 48% com apenas a 1a dose está muito abaixo da taxa média dos ricos.

Outro exemplo de destaque é especialmente benvinda para nós. O Brasil possui no momento taxa de alguma vacina em torno de 80% e de vacinação completa em torno de 70%. Essas taxas ficam abaixo do vizinho Chile,  com valores respectivos de 92% e 88%. No entanto, são comparáveis com taxas de tradicionais países desenvolvidos, como Japão, França, Reino Unido e Itália.

A comparação entre continentes também revela dados interessantes. Apesar do subdesenvolvimento reinante em boa parte da America do Sul, nosso continente apresenta expressivos valores para ambas as taxas: 79% e 68%, apenas um pouco abaixo das taxas brasileiras. Esses valores estão muito próximos, embora um pouco acima, de continentes como Europa (67% e 64%), América do Norte (70% e 61%) e Ásia (71% e 62%). Ou seja, a maioria dos continentes parece estar flutuando em torno dos mesmos valores. 

O lado triste e preocupante da história é claramente o continente africano. Lá, a taxa média de vacinação com um única dose é de apenas 16% e a vacinação completa é privilégio de apenas 11% da população. Um importante e populoso país africano exemplifica o abismo nesse continente. A Nigéria tem taxas assustadoramente baixas (7% e 3%). 

Essas baixas taxas são um excelente fomentador para a proliferação do virus e para o aparecimento de novas variantes. Essas últimas prolongam ainda mais a expansão e a perpetuação da pandemia no planeta. O virus está sempre em busca de novos indivíduos vulneráveis para causar sérios danos ou mesmo para indivíduos vacinados onde a maior chance é de causar no máximo pequenos danos. Enquanto as taxas de vacinação africanas não sofrerem aumentos substanciais, a migração de pessoas (e consequentemente do virus) impedirá a completa erradicação dessa doença no mundo. E nenhum país estará imune, a menos que tome medidas extremamente austeras e de difícil implementação. O problema da África hoje é de fato problema de toda a humanidade. Todos os esforços devem ser envidados para resolvê-lo, para o bem de toda a humanidade. 


terça-feira, 25 de janeiro de 2022

Mudanças na definição de vacina/vacinação do CDC

Fonte: Hakan Nural em unsplas

CDC é a sigla do Centro para Controle e Prevenção de Doenças, o órgão público americano para acompanhamento de todos os tipos de doença nos Estados Unidos. Anteriormente chamado de Centro para Doenças Comunicáveis, teve a palavra Prevenção incluida no seu nome em 1992 como consequência direta da tendência que se estabelecia naquele momento de enfatizar a prevenção como ferramenta indispensável para o combate e o controle de qualquer doença. 

Como agência sanitária do país que mais investe em ciência (e medicina), trata-se de um instituto com inserção de protagonista em qualquer assunto ligado à saude da humanidade. Assim, ele rivaliza com a Organização Mundial de Saude em termos de relevância e estabelecimento de padrões para compreensdão da saude no nosso planeta. Essa rivalidade é em geral amistosa e colaborativa mas não passa desapercebida pela mídia

Sendo uma referência mundial, é no minimo ilustrativo ver as definições que esse organismo atribui a palavras tão relevantes como vacina e vacinação. Para isso, basta acessar aqui. Mas o ponto relevante aqui é que essa definição acaba de ser divulgada. Portanto, vale a pena comparar as definições atuais e anteriores e entender o que mudou e porque mudou.

A definição anterior para vacina dizia "um produto que estimula o sistema imune de uma pessoa a produzir imunidade contra uma doença específica", enquanto o texto anterior para vacinação dizia "o ato de introduzir uma vacina em um corpo para produzir imunidade contra uma doença específica". A mudança foi julgada necessária porque, embora ambos os trechos não dissessem isso, as definições poderiam ser interpretadas (e efetivamente o foram) como garantia de imunidade total, ou seja, obtida com 100% de certeza. Isso nenhuma vacina oferece mas muitos agentes no atual cenário exploraram essa inevitável dose de incerteza para gerar desconhecimento e promover a campanhas contra essa particular vacinação.

Em linha com as preocupações externadas na nossa última postagem, o CDC resolveu se precaver contra possíveis maus usos de suas afirmações e promoveu as mudanças. No caso de vacinação, a palavra imunidade, que é comumente associada a certezas, foi trocada por proteção, que não carrega o fardo da infalibilidade. Para a definição de vacina, a troca foi mais abrangente e trocou a frase citada no parágrafo acima por "um preparado que é usado para estimular o sistema imune de uma pessoa contra doenças".  A chave foi remover a expressão "promover imunidade", de novo com o mesmo objetivo.

A interpretação feita acima sobre os motivos para a mudança foram apresentados por um assessor de imprensa do próprio CDC, como informado pela midia americana. Mesmo com todo esse cuidado, foram levantadas especulações sobre outros possíveis motivos para a mudança, como atesta o tweet de um congressista americano.

Era esperado que uma mudança como essa em plena pandemia não passasse imune a críticos em geral, especialmente entre aqueles que são contra vacinação ou que nutrem dúvidas a respeito de sua eficácia. De fato, as vacinas não garantem a imunidade com 100% de certeza. Associar alguma incerteza, por menor que seja, a algum procedimento necessário abre a possibilidade de sua adoção ser questionada. E isso pode levar até à rejeição do procedimento, dependendo da penetração desse questionamento em determinados setores da sociedade.

Sendo assim, não custa reafirmar que a introdução das vacinas contra a COVID19 pode não ter conseguido erradicar a doença como alguns acreditaram mas foram extremamente relevantes para diminuição de número e severidade dos casos confirmados. Além disso, promoveram uma significativa redução na mortalidade associada a essa doença. Como o próprio assessor do CDC cuidou de ressaltar, o mais importante não é a mudança na nomenclatura mas sim "o fato que a vacina e a vacinação preveniram milhões de doenças e salvaram um incontável número de vidas".


Dê ao público as ferramentas para acreditar nos cientistas

Fonte: Anita Makri

Ainda em função da discussão feita na postagem da semana passada, reproduzo abaixo o texto publicado há 5 anos no dia 19/01/2017 na prestigiosa revista Nature, uma das mais importantes na Ciência. Vou reproduzi-lo fielmente em portugues sem que eu necessariamente concorde com o seu conteudo mas como objeto de reflexão para todos preocupados com a melhor comunicação possivel da Ciência para com seu publico-alvo: a sociedade e como evidência do crescente papel da incerteza no cenário científico atual. 

Então, vamos ao texto Dê ao público as ferramentas para acreditar nos cientistas

por Anita Makri

O que é verdade? Como a encontramos e ela ainda tem peso no debate público? Dados os recentes acontecimentos políticos, estas são questões importantes e urgentes. Mas das duas áreas em que trabalho que se preocupam com a verdade – ciência e jornalismo – apenas a última se engajou seriamente e buscou respostas. Os cientistas precisam recuperar o atraso, ou correm o risco de uma maior marginalização em uma sociedade que está cada vez mais pesando as evidências e tomando decisões sem elas.

Enquanto os jornalistas debatem fatos e falsidades, seu próprio papel e possíveis formas de reagir, os cientistas parecem se ver como vítimas do, e não como atores ativos no, novo cenário político. A maioria dos debates se concentra em como a nova ordem política ameaça o conhecimento científico e o financiamento da pesquisa, ou minimiza a política de mudanças climáticas.

Todos são importantes, mas o que muitos ignoram é como a ciência está perdendo sua relevância como fonte de verdade. Para recuperar essa relevância, cientistas, comunicadores, instituições e financiadores devem trabalhar para mudar a forma como a ciência socialmente relevante é apresentada ao público. Não se trata de um melhor treinamento de mídia para pesquisadores. Exige um repensar sobre o tipo de ciência que queremos comunicar à sociedade mais ampla. Esta mensagem pode soar familiar, mas o novo foco na pós-verdade mostra que agora existe um perigo tangível que deve ser abordado.

Grande parte da ciência que o público conhece e admira transmite uma sensação de admiração e diversão sobre o mundo, ou responde a grandes questões existenciais. Está na popularização da física através dos programas de televisão do físico Brian Cox e em artigos sobre novos fósseis e comportamento animal peculiar nos sites dos jornais. É uma ciência vendável e familiar: enraizada em testes de hipóteses, experimentos e descobertas.

Embora essa ciência tenha seu lugar, ela deixa o público (para não falar dos formuladores de políticas) com uma visão diferente e ultrapassada daquela dos cientistas sobre o que constitui ciência. As pessoas esperam que a ciência ofereça conclusões qualificadas que correspondam ao modelo determinístico. Quando há informações incompletas, conhecimentos imperfeitos ou conselhos mutáveis ​​– tudo parte integrante da ciência – sua autoridade parece estar minada. Vemos isso no debate público sobre alimentação e saúde: primeiro, a gordura era ruim e agora é o açúcar. Uma conclusão popular dessa mudança de base científica é que os especialistas não sabem do que estão falando.

Mas as questões que as pessoas enfrentam em suas vidas geralmente dependem da ciência incremental, do tipo que acumula evidências sobre sistemas complexos com inúmeras variáveis ​​e parâmetros sociais difusos. Ela alimenta políticas e decisões sobre como lidar com a poluição ambiental, segurança de vacinas, infecções emergentes, riscos de drogas, escolhas alimentares ou os impactos das mudanças climáticas.

“Os cientistas devem trabalhar para mudar a forma como a ciência socialmente relevante é apresentada ao público. ”

Esse tipo de ciência socialmente relevante e discussão da incerteza aparece na mídia, mas é mais típico de artigos que discutem a política e as controvérsias em torno dela, talvez sob o rótulo de meio ambiente ou saúde. Não se trata de manipular ou persuadir o público a aceitar decisões, mas sim fornecer-lhes as ferramentas com as quais entender as evidências, colocar as incertezas em perspectiva e julgar por si mesmos qual a contribuição da informação científica para a verdade. Sem essa capacidade, emoções e crenças que cedem a falsas certezas tornam-se mais críveis.

É mais difícil falar sobre ciência que é inconclusiva, ambivalente, incremental e até política – requer uma mudança de pensamento e traz riscos. Se não for comunicada com cuidado, a ideia de que os cientistas às vezes 'não sabem' pode abrir a porta para aqueles que querem contestar as evidências.

Ainda assim, se o público estiver mais bem equipado para navegar nessa ciência, isso restauraria a confiança e melhoraria a compreensão de diferentes vereditos e talvez ajudaria as pessoas a ver algumas das notícias falsas que circulam sobre assuntos científicos. Levantar a tampa dessas realidades sobre a ciência socialmente relevante é principalmente mudar o conteúdo e o enquadramento do que está sendo comunicado. E poderia ser incentivado visando vários pontos de contato entre a ciência e o público. Programas de engajamento público de instituições de pesquisa, educacionais ou culturais são uma opção óbvia. Ligações mais estreitas entre educadores, comunicadores e cientistas também podem fortalecer a forma como a ciência socialmente relevante é representada em artigos e currículos. Tendências mais amplas não estão incentivando esse tipo de história científica. Portanto, o impulso precisará vir primeiro da ciência. Por exemplo, as academias de ciências poderiam oferecer mais bolsas para apoiar um jornalismo mais sofisticado.

Os cientistas podem influenciar o que está sendo apresentado articulando como esse tipo de ciência funciona quando conversam com jornalistas ou quando aconselham sobre projetos políticos e de comunicação. É difícil de fazer, porque desafia a posição da ciência como um guia singular para a tomada de decisões e porque envolve admitir não ter todas as respostas o tempo todo, mantendo um senso de autoridade. Mas feita com cuidado, a transparência ajudará mais do que prejudicará. Ajudará a restaurar a confiança e esclarecerá o papel da ciência como guia.

Os debates atuais sobre a verdade estão longe de ser triviais. Mais cientistas e comunicadores da ciência precisam se envolver, atualizar práticas e se reposicionar de uma forma que acompanhe os tempos e mostre que a ciência importa – enquanto ainda importa.

Referência completa: Makri, A. (2022). Give the public the tools to trust scientists. Nature 541, 261 (2017). https://doi.org/10.1038/541261a


terça-feira, 18 de janeiro de 2022

Não olhe para cima

https://www.netflix.com/br/title/81252357

A postagem desta semana é sobre o filme que foi a sensação do período de festas de fim de ano, ao menos aqui no Brasil entre meus círculos de contato. O filme Não Olhe para Cima (Don't Look Up, na versão original) trata de uma série de questões bastante gerais como ética, destino da humanidade e relacionamento humano. Mas o aspecto que gostaria de focar aqui é o próprio objetivo deste blog: popularização da Ciência.

Sem estragar (o atual dar spoiler sobre) o fim do filme para quem não o viu, basta para nossa postagem falar sobre a parte inicial do filme. Ele começa com uma aluna de doutorado da Universidade de Michigan fazendo uma descoberta. Após confirmar seus cálculos com seu orientador, eles se asseguram que a descoberta é sobre a iminente colisão de um cometa com a face da Terra. E as especificidades do problema indicavam que essa colisão significaria o fim da humanidade. 

A partir dai, o filme segue o roteiro esperado de comunicar esse resultado catastrófico para o resto da sociedade (americana, no caso). Os pesquisadores conseguem acessar rapidamente um diretor da NASA, que logo entende os achados dos pesquisadores e esse grupo de 3 pesquisadores passam a procurar formas de comunicar à sociedade e às autoridades sobre a gravidade dos seus descobertas. Essa é a parte que nos interessa.

Eles são convidados a encontrar com a presidente dos Estados Unidos e seu estafe para apresentar seus resultados. Antes disso, são obrigados a tomar um chá de cadeira de mais de 24hs na ante-sala do famoso Salão Oval (escritório da presidência americana dentro da Casa Branca) porque a presidente estava envolvida com "assuntos mais importantes que o fim da humanidade". Ao entrar, eles encontram uma certa dificuldade para explicar os seus achados pois os pesquisadores resolvem embasar sua apresentação oral dos fatos a partir dos modelos matemáticos que os sustentam. A presidente e seu staff desvalorizam a argumentação basicamente por não a entenderem. E esse ponto é importante: a apresentação da teoria que sustenta a sua mensagem serviu apenas para afastar os ouvintes e diminuir a importância do achado para eles. Levou muito tempo para que eles pudessem consertar o estrago e conseguissem passar a mensagem do caos iminente. Mesmo assim, a mensagem não chegou aos interlocutores com a devida importância.

Outra passagem importante do filme se dá quando eles os pesquisadores conseguem ser incluidos em um programa de variedades que trata com igual leveza temas sérios ou banais. Essa leveza a frente de um problema tão grave tirou a paciência dos pesquisadores e levou-os, especialmente a doutoranda, a perder a compostura e se descontrolar perante as câmeras. Assim, o esforço de comunicação de resultados para a sociedade acabou sendo novamente desperdiçado pela incapacidade dos pesquisadores de vencer a barreira de comunicação com os apresentadores do programa. 

É bem verdade que a tarefa deles se deu em condições adversas. Eles não estavam em congresso científico, onde a argumentação lógica adotada na Ciência é a linguagem comum. Muito pelo contrário! No episódio do Salão Oval, a interlocução era com políticos. Em um momento da conversa, a presidente chega a perguntar 

- Ok, ouvi vocês. Quanto isso vai me custar. O que vocês vieram pedir? 

Ou seja, a compreensão do público de políticos foi toda contaminada pela barganha com a qual eles estão acostumados.  Algo similar acontece no programa de variedades quando, após ouvir sobre a tragédia que estava sendo anunciada, o âncora do programa retruca que eles agem assim porque até noticias ruins são trazidas de forma suave, por conta do tom do programa. 

É claro que tudo no filme é uma sátira e promove uma gigante amplificação da dificuldade de compreensão das pessoas sobre o que a Ciência informa. Na minha psssagem preferida, depois de todos esses dissabores o diretor da NASA se despede do pesquisador, quando ele estava embarcando no trem de volta para casa, dizendo em tom de orientação: 

- Você está só contando uma história. Mantenha-a simples. Sem Matemática. 

Ao que o pesquisador responde em total desolação:

- Mas é tudo Matemática!

Todas as citações acima foram recuperadas a partir de postagens que elencam algumas das melhores falas do filme. Recomendo que visitem essas e outras postagens pois existem outras falas interessantes mas cujas análises não cabiam aqui no espaço desta postagem. Em uma dessas falas, a presidente reclama de ser apresentada a ela uma probabilidade de 100%, ao que os pesquisadores retrucam com o valor mais preciso de 99,78% 

Esses diálogos me lembram de uma entrevista que dei para um meio de comunicação sobre a Teoria de Resposta ao Item, usada para gerar as notas do ENEM, alguns bons anos atrás. A forma como essa nota é calculada se baseia na proficiência estimada do aluno. Essa conta é altamente não-linear, que depende inclusive do padrão de resposta de cada particular aluno. Esse assunto já foi objeto de algumas postagens aqui no StatPop. Mas como explicar isso para um jornalista? 

Eu fiz o meu melhor para explicar isso ao jornalista com o mínimo de Matemática, embora tudo fosse, de fato, apenas Matemática. Ai, ele me perguntou se a nota era uma ponderação dos acertos de cada questão. Obviamente, isso levaria quem assessasse essa entrevista a achar que a nota era dada por uma média ponderada das notas dos ítens, sendo cada um deles com seu respectivo peso. Eu queria evitar essa mensagem por estar errada. Depois de tentar explicar a mesma conta feita pela TRI de umas 3 ou 4 maneiras diferentes e o jornalista insistir na ponderação, eu confesso que capitulei. Terminei por concordar com ele que se tratava de uma ponderação....

Enfim, o filme suscita vividamente o debate das formas de comunicação da Ciência com a sociedade e nos faz refletir, entre inúmeros outros assuntos, de como isso poderia ser aprimorado. Recomendo!  


terça-feira, 11 de janeiro de 2022

Os números por trás da vacinação infantil contra a COVID19

 

Fonte: Andrew Medichini/AP

A postagem desta semana volta ao tema da vacinação contra a COVID19. Até o momento, o Brasil adquiriu uma taxa de cobertura vacinal igual ou até mesmo superior à de alguns paises desenvolvidos. Isso só foi possivel graças à enorme capilaridade do sistema de vacinação implantado no país. Entretanto, essa taxa ainda se mostrou insuficiente para atingir a chamada imunidade de rebanho e conter o avanço da pandemia, especialmente com o surgimento de novas variantes como a Ômicron. 

Países ao redor do mundo se depararam com essa situação e tomaram o aumento da cobertura para outras parcelas da população como estratégia de mitigação dos efeitos adversos. Paralelamente, começaram a haver experimentos científicos ao redor do mundo para verificar a viabilidade da utilização da imunização para crianças entre 5 e 11 anos. Esses estudos mostraram que a estratégia era benéfica e iniciaram suas campanhas de vacinação em massa para crianças nessa faixa etária. O renomado Center for Disease Control (CDC) dos Estados Unidos foi bastante enfático ao recomendar sem hesitação que todos indivíduos acima de 5 anos sejam vacinados. A foto acima foi tomada na campanha realizada na Itália.

Obviamente, todos os cuidados foram tomados especialmente no que diz respeito aos possíveis aspectos adversos da vacina, os chamados efeitos colaterais. Foi detectado que a vacina da Pfizer se servia bem a esses propósitos (com dosagem inferior à adotada para adultos). No caso específico de miocardite, um dos principais efeitos colaterais da vacina, foi verificado que entre os mais de 7 milhões de vacinas aplicadas a crianças, apenas 8 relataram a presença de miocardite, todas com sintomas moderados e nenhuma delas indo a óbito. Essa conta leva a uma taxa de cerca de 1 caso (não letal) a cada 1 milhão de crianças. 

Esse número pode ser comparado com a mortalidade de crianças com 5 a 11 anos aqui no Brasil. De acordo com nota técnica do CONASS (Conselho Nacional de Secretarias de Saude), já houve 301 mortes por COVID19 para essa faixa etária. O número parece baixo e até vem sendo usado para justificar a não adoção da imunização para essa faixa etária. Obviamente, esse número é enorme para as 301 famílias enlutadas.

Entretanto, temos cerca de 20,5 milhões de brasileiros nessa faixa etária. Ao fazer as contas, verificamos que a taxa de mortalidade é de 14,6 mortes para cada 1 milhão de crianças. Essa taxa é muito superior à taxa de ocorrência dos efeitos colaterais mais preocupantes com a vacina

Assim a escolha é adotar uma medida que tem risco de adoecimento (e não morte!) de 1 a cada 1 milhão ou manter o estado atual de 14,6 mortes a cada 1 milhão? A resposta me parece óbvia.

Então, porque está havendo reação adversa ao uso imediato da vacina no Brasil para crianças entre 5-11 anos? Não sei explicitar os motivos mas o que vejo em alguns sites é um uso deliberado de informação de maneira parcial, a ponto de negar o que o próprio detentor da informação preconiza (ao ponto de dizerem que essa vacina não é uma vacina). Além disso, os que se posicionam contra a adoção da vacina entendem que seria preciso esperar vários anos para que pudesse ser estabelecida a relevância da adoção dessa vacina.

O próprio caso da vacinação mundial de adultos é a maior evidência contra esse argumento. A drástica redução nos casos e, principalmente, nas mortes experimentadas ao redor do mundo após a introdução da imunização deveriam ser prova mais do que eloquente do acerto dessas medidas. Num entendimento mais geral, a Ciência não se baseia em achados eventuais. Ela define critérios claros necessários para certificação de uma prática em qualquer que seja a área do saber. No caso específico da Medicina, a humanidade já acumulou séculos de experiência para lidar com as avaliações de risco inerentes a qualquer prática de intervenção em seres humanos. Já existe um robusto arsenal de ferramentas que indicam os melhores caminhos a serem adotados. [Os poucos números que apresentei acima são apenas um exemplo, para o caso de COVID19 em crianças.]

É claro que se quisessemos poderiamos colocar uma lupa apenas nos aspectos negativos de uma medida que não nos agrade e ignorar os aspectos positivos. Essa é uma opção de vida. No meu caso, prefiro acreditar na Ciência e na sua capacidade de acumular coerentemente conhecimento. Só isso irá permitir uma ponderada avaliação dos riscos associados a cada medida e de adotar sempre aquela de menor risco. É isso que o CDC dos Estados Unidos, a ANVISA do Brasil e outros órgãos reguladores da saude em todo o mundo vem fazendo.


terça-feira, 4 de janeiro de 2022

Projeto CovidLP 2021

Fonte: www.routledge.com/Building-a-Platform-for-Data-Driven-Pandemic-Prediction-From-Data-Modelling/Gamerman-Prates-Paiva-Mayrink/p/book/9780367709976

Antes de escrever qualquer frase, gostaria de desejar um Feliz ano de 2022 para todos os apoiadores/leitores do StatPop. 

Estou há mais de 1 ano sem postar e 2 anos sem retornar ao regime usual do StatPop de postagens semanais. O primeiro pedido que devo fazer é o de desculpas àqueles que se acostumaram a ler essas postagens das 3as feiras. Como todos estão cientes, a humanidade sofreu mudanças drásticas devido à pandemia de COVID-19. Várias pessoas tiveram modificações profundas nos seus hábitos tanto pessoais quanto profissionais e o StatPop não ficou imune.

Por motivos profissionais, me envolvi em inúmeros projetos interessantes e com forte impacto para a sociedade, em consonância com o compromisso deste blog. Mas o fato é que eles acabaram desviando o foco do StatPop. Um desses projetos é um outro blog de popularização da Estatística, desenvolvido pelo International Statistical Institute. Fui convidado para ser contribuinte com textos eventuais, como já havia informado aqui, sendo o ultimo publicado em fevereiro de 2021. Outro projeto fascinante é o de utilização de metodologia estatística que recentemente desenvolvemos para entender aspectos da história de ocupação da Amazônia pelo homem, desde antes da sua "colonização". Pretendo tratar desses assuntos interessantes em postagens futuras.

Mas o maior responsável pelo afastamento do StatPop foi sem dúvida o Projeto CovidLP.  Esse projeto já superou e muito as expectativas originais, quando da sua criação e segue crescendo. Ele contou em 2020 com uma extraordinária equipe de colaboradores voluntários, basicamente alunos de pós-graduação da UFMG. Em 2021, a equipe diversificou para incluir também alunos de outras instituições (UFRJ) e alunos de graduação.

Até agora, o projeto já gerou um site com informações sobre ele, um aplicativo contendo as previsões de casos e óbitos, o software PandemicLP contendo os códigos necessários para usuários reproduzirem nossas análises em seus conjuntos de dados e, mais recentemente, o livro Building a Platform for Data-Driven Pandemic Prediction: From Data Modelling to Visualisation - The CovidLP Project, publicado pela Chapman & Hall. A capa do livro é a imagem do início desta postagem

Com 382 páginas e 105 figuras ou diagramas, o livro foi publicado em setembro do ano passado, com um sumário de toda a informação gerada no projeto tanto em termos de metodologia estatística quanto em termos que avanço computacional com vistas à disponibilização de dados e de previsões. Todo esse trabalho foi realizado sobre a base gerada pela equipe de 2020, que permaneceu até início de 2021.

O projeto trabalha com uma equipe renovada de voluntários desde maio de 2021. Desde então, parte do tempo foi consumida para treinar a nova equipe para entender em que situação se encontrava o projeto e o que já havia sido atingido. Só assim foi possível habilita-los a encarar os desafios do projeto. Essa equipe também teve um desempenho exemplar e ao final do ano já podiam ser vislumbradas algumas novas funcionalidades. O projeto deverá em breve incorpora-las em breve após realizar testagem mais abrangente sobre elas. 

As mais importantes novidades serão o uso de distribuições amostrais mais flexíveis para os dados, com uma mais apropriada atribuição de incerteza nas previsões, e a recuperação da história do projeto, com a disponibilização da sequencia de previsões que o projeto gerou para cada pais/estado em um formato dinâmico. Além disso, haverá aumento de funcionalidades e do número de opções do PandemicLP. O StatPop irá repercutir esses novos avanços à medida que eles sejam alcançados.

Mais geralmente, pretendemos voltar a manter este blog ativo, com alguma periodicidade. Retomar a periodicidade semanal seria o ideal mas isso talvez seja pedir muito agora. Uma das leis da natureza é que os filhos eventualmente saem de casa/ninho e dependem progressivamente menos da tutela paterna para progredir de forma mais autonoma e viverem suas vidas. 

Isso vale também para os projetos, como o CovidLP, que funcionam como "filhos", oriundos da profissão de cada um. Esse projeto já adquiriu maturidade e o estágio atual do CovidLP já permite aos seus membros maior autonomia. Com isso, facilita ao direcionamento de parte da nossa atenção para outros projetos de disseminação da ciência que nos são igualmente caros, como o StatPop. Essa é intenção para 2022.